Ricardo Maffeis Martins
Em nossa última coluna, trouxemos reflexões sobre as aplicabilidades da inteligência artificial (IA) ao meio jurídico – leitura e triagem de publicações, pesquisa de precedentes, elaboração de minutas de petições e sentenças, entre outras –, tendo apontado que, não obstante ainda estejamos longe de imaginar a substituição das atividades preponderantemente intelectuais por robôs, essa tecnologia já tem sido de grande valia ao trabalho dos chamados operadores do direito.
Embora essa realidade de fato ainda esteja um tanto quanto distante, não há como ignorar que a IA já mostra sinais de que, assim como praticamente todo o mercado de trabalho, a nossa área irá passar por mudanças bastante sensíveis.
A história nos mostra que o desenvolvimento tecnológico – aliado, é verdade, a outros fatores como urbanização e escassez de recursos – traz inovações disruptivas que provocam deslocamentos de grandes massas de mão de obra. Datilógrafos, telefonistas e vendedores de enciclopédias são apenas alguns exemplos de profissões que deixaram de existir, vindo, pelo menos até aqui, a serem substituídas por outras que acabam incorporando a mão de obra excedente e mantendo os níveis de empregabilidade.
Entretanto, apesar desse movimento ser cíclico, o que se verifica mais recentemente é que as novas carreiras não têm sido capazes de absorver toda essa mão de obra excedente. Um estudo da PwC1 indica que, até 2030, países mais desenvolvidos como Japão, Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos terão até um terço dos seus postos de trabalho ocupados por robôs.
Além disso, conquanto no passado as profissões comprometidas fossem, via de regra, de baixa qualificação, a tendência atual é que mesmo carreiras que demandam conhecimento técnico sejam afetadas pela IA, dada a sua capacidade de perceber variáveis, tomar decisões e resolver problemas, aproximando-se do raciocínio e da inteligência humana.
Consoante avaliação feita pelos professores Arthur Igreja e Allan Costa2 para reportagem da revista Exame3, profissões de elevada qualificação, como piloto de avião, anestesista e engenheiro de software, devem acabar até 2030.
Embora não seja propriamente uma profissão, a lista dos professores inclui o estagiário em direito/assistente jurídico, devido ao fato de que tarefas repetitivas de acompanhamento de processos e pesquisas jurisprudenciais já podem ser realizadas por sistemas baseados em IA, como o Watson da IBM, com eficiência e precisão maiores do que quando executadas por seres humanos. De acordo com os professores "advogados que executam atividades que dependem de interpretação e deduções subjetivas continuarão sendo cada vez mais valiosos, mas assistentes jurídicos, principalmente em início de carreira, que realizam as tarefas repetitivas inerentes à atividade jurídica, fatalmente, serão substituídos por soluções de inteligência artificial".
Com efeito, o momento atual já mostra uma redução sensível na contratação de estagiários e assistentes jurídicos por escritórios, empresas e mesmo repartições públicas, claramente fruto da diminuição dos serviços a serem por eles executados: (i) acompanhamentos de processos, obtenção de cópias e protocolos de petições, que antes demandavam diligências aos fóruns, hoje são realizados à distância pela via digital; (ii) pesquisas de doutrina e jurisprudência, bem como as denominadas due diligences (processos de busca e análise de contingências para avaliação dos riscos inerentes a determinada operação) são agilizadas e otimizadas por programas criados especificamente para esse fim; (iii) triagem de publicações, controle de prazos, preenchimento de guias e até mesmo a elaboração e protocolo de petições padrão – como juntada de mandato e oposição ao julgamento virtual – já podem ser feitas de maneira integrada e automática por determinados sistemas de gestão jurídica. Em suma, é difícil encontrar um trabalho típico de estagiário/assistente jurídico que não tenha sido substituído ou ao menos facilitado pela IA.
Ademais, a oferta por programas e sistemas dessa natureza cresce exponencialmente, tornando o preço de tais produtos cada vez mais acessível, permitindo que até mesmo pequenos escritórios e empresas se beneficiem de toda essa tecnologia substitutiva da força de trabalho humano.
Não bastasse, a Covid-19 trouxe – ou pelo menos acelerou a vinda de – mais um elemento para essa equação, consistente na virtualização de despachos, audiências e entrega de memoriais, trabalhos que, a rigor, não afetam apenas os estagiários e advogados mais jovens, mas todos aqueles que militam na área contenciosa. Ainda não se sabe se, passada a pandemia, essa nova dinâmica irá se perenizar, mas as comodidades e economias a ela inerentes levam a crer que boa parte dessas atividades seguirá sendo praticada pela via eletrônica, ou seja, mais uma rotina que reduz o trabalho dos estudantes e recém-formados – na entrega de memoriais nos gabinetes, acompanhamento de julgamentos e realização de despachos mais simples.
Malgrado todas essas mudanças, a opinião quase unânime é de que as profissões ligadas ao Direito seguirão existindo, já que os trabalhos mais intelectuais, como a redação e interpretação de grandes contratos, a elaboração de peças processuais complexas e a tomada de decisões subjetivas continuarão sendo atividades eminentemente humanas.
Nesse ponto, porém, surge uma questão que merece ponderação: como preparar as novas gerações de bacharéis em Direito para realizar esses trabalhos com excelência? Até hoje, boa parte da experiência desses profissionais não é adquirida nos bancos das faculdades, mas nos estágios e nos primeiros anos de exercício da advocacia. A famigerada "barriga no balcão" sempre foi fundamental para familiarização com os detalhes dos diversos ritos processuais e conhecimento dos meandros dos tribunais, assim como a assessoria a magistrados, de extrema valia para os que desejam prestar concursos públicos e o estágio em empresas, indispensável a quem quer agregar uma visão econômico e comercial do direito, para poder ocupar cargos de gerência e diretoria. Enfim, grande parcela do aprendizado e, principalmente, do amadurecimento profissional, é fruto desses trabalhos, de modo que a sua extinção tende a provocar sérias deficiências na formação e aperfeiçoamento dessas pessoas.
Para evitar que isso ocorra, escritórios, empresas e órgãos do Poder Público devem agir de maneira consciente e, na medida do possível, manter essa mão de obra, ainda que com menos demanda de trabalho, investindo em treinamento para que se qualifiquem. O avanço da tecnologia no ramo do direito é um caminho sem volta. Por isso, não podemos rejeitar essa realidade, mas nos adaptarmos a ela. E, como sempre, aqueles que se aperceberem disso primeiro, desenvolvendo novos modelos de negócio, certamente sairão na frente.
Será preciso dar a esses profissionais novas competências. Se, de um lado, atividades como as acima mencionadas passarão a ser realizados por máquinas, caberá a nós, de outro, a partir de um olhar integrado de mercado e uma dose de criatividade, pensar em meios para assegurar que as novas gerações de advogados desenvolvam habilidades que agreguem valor aos serviços por eles prestados, principalmente através da interdisciplinaridade. Os novos bacharéis em direito não poderão se limitar a desenvolver conhecimentos técnicos na sua área, deverão busca uma formação mais abrangente, em linha com as novas demandas de mercado, somando ao seu currículo outras aptidões.
Aliás, esse movimento não é inédito. Não é raro encontrar advogados que buscam formações complementares – administração de empresas, contabilidade, engenharia e até medicina –, pensando na possibilidade de prestarem serviços mais especializados.
A diferença é que, doravante, abre-se um novo horizonte, com a busca de capacitação nas áreas de tecnologia e informática, como conhecimento em programação de computador. Advogados programadores terão oportunidades destacadas de emprego em diversos novos setores, como lawtechs e empresas que trabalham com blockchain. Esse é apenas um exemplo de novas competências que podem manter a vantagem competitiva do advogado frente aos robôs.
Afinal, se é verdade, como dito, que profissões tradicionais como medicina, engenharia e o próprio direito não serão extintas com o advento da IA, é igualmente verdade que tais profissões serão exercidas de maneiras substancialmente diferentes daquelas existentes na atualidade, cabendo a nós estarmos preparados para tanto.
2 Fundadores da plataforma digital AAA "Triple A", focada em disrupção em negócios, carreiras e economia transformadora.
3 Estas profissões podem acabar até 2030 (ao menos para os humanos).
Daniel Bittencourt Guariento é sócio da área contenciosa do Machado Meyer Sendacz e Opice Advogados, especialista em Direito Digital e tecnologia. Membro da Comissão Especial de Tecnologia e Informação da OAB, do Conselho de Tecnologia e Informação do IASP e do Comitê de Direito Digital do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA). Ex-assessor de ministros do STJ, na sessão de Direito Privado.
Ricardo Maffeis Martins é professor de Direito Processual Civil da Escola Paulista do Direito - EPD. Advogado do escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados. Membro do Centro de Estudos Avançados de Processo (Ceapro) e da Comissão de Estudos de Inteligência Artificial do IASP. Ex-assessor de ministros do STJ, onde exerceu também a função de coordenador da Segunda Seção.
(Migalhas – 31.07.2020)
(Notícia na íntegra)