Na tentativa de angariar recursos para a União durante a pandemia do coronavírus, o Congresso cogita instituir um empréstimo compulsório justificado pelo estado de calamidade pública e aumentar a alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) de setores específicos, como instituições financeiras e mineradoras.
Entretanto, tributaristas alertam que da forma como estão as medidas podem ser questionadas no Supremo Tribunal Federal (STF) por desrespeitarem diretrizes impostas pela Constituição para proteger os direitos dos contribuintes. De um lado, tributaristas argumentam que o empréstimo compulsório promoveria a cobrança de tributos sobre lucros auferidos antes da publicação da lei, o que fere a irretroatividade tributária. De outro, a majoração da alíquota da CSLL só pode ser cobrada 90 dias após a publicação da lei que a institui, e segundo Advogados a elevação para 50% poderia ter caráter confiscatório.Empréstimo compulsório e retroatividade
O principal problema de constitucionalidade apontado por confederações e tributaristas sobre o projeto de lei complementar (PLP) 34/2020, que cria o empréstimo compulsório para financiar despesas com o coronavírus, é uma suposta ofensa ao princípio da irretroatividade tributária. A Constituição determina que não podem ser tributados fatos geradores que tenham ocorrido antes da entrada em vigor da lei que instituiu a tributação, determinação que consta no artigo 150 inciso 3 alínea a da Carta.
Segundo o tributarista Igor Mauler, sócio do escritório Mauler Advogados, o princípio da irretroatividade tributária seria ferido pelo PLP 34/2020 porque as empresas com patrimônio líquido igual ou superior a R$ 1 bilhão teriam que pagar, em 30 dias, 10% do lucro líquido apurado nos 12 meses anteriores à publicação da lei. Assim, o compulsório estaria tributando lucro auferido antes da entrada em vigor da lei. “Nenhum país do mundo aumentou tributos neste momento, medida que é contraditória com os alívios – aliás tímidos – que a União e alguns outros entes têm dado em face da grave retração da economia”, criticou. A advogada Cristiane Romano, sócia do Machado meyer, acrescentou que ao se basear no desempenho econômico em meses anteriores o empréstimo compulsório também pode ferir o princípio constitucional da capacidade contributiva – isto é, a aptidão econômica de cada contribuinte para colaborar com a carga tributária."O mais grave é que se considera o patrimônio líquido de 2019, que não é mais a realidade. Um exemplo fácil são as companhias aéreas, que estavam bem em 2019 e hoje estão quebradas".
Ainda, Romano alertou para o histórico do Brasil com os empréstimos compulsórios. O governo José Sarney cobrou um empréstimo compulsório sobre a compra de carros e combustíveis entre 1986 e 1988. Ainda na década de 1980 foi cobrado o empréstimo compulsório sobre energia elétrica em favor da Eletrobras, exigência que se arrastou até 1993 e está em debate no Judiciário até hoje. “Ou não são devolvidos ou a correção monetária não recompõe o valor”, avaliou. Por fim, Mauler salientou que o projeto que institui o compulsório delega ao Executivo a fixação da alíquota, o que deveria ser feito por meio de lei. A inconstitucionalidade do empréstimo compulsório foi defendida em carta endereçada ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), no início de abril por sete confederações: a do Comércio (CNC), a das Instituições Financeiras (CNF), a da Saúde (CNSaúde), a de Seguros (CNSeg), a do Transporte (CNT), a das Cooperativas (CNCoop) e a da Comunicação Social (CNCom). As confederações têm legitimidade para questionar leis no Supremo por meio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs). Também podem ajuizar ADIs o presidente da República, a Mesa do Senado, a Mesa da Câmara, assembleias legislativas estaduais ou distrital, governadores, o procurador-geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e partidos políticos. Em nota oficial, a Frente Nacional da Agropecuária (FNA) também sustentou que o empréstimo compulsório ofende o princípio da irretroatividade da lei tributária.Quanto ao princípio da anterioridade nonagesimal, que só autoriza a cobrança de tributos após 90 dias da publicação da lei que os institui, a Constituição faz uma exceção aos empréstimos compulsórios. Quando destinados a atender despesas decorrentes de calamidade pública, os empréstimos compulsórios podem ser exigidos imediatamente.
CSLL: alíquota majorada para bancos e mineradoras
Tramitam no Congresso o PL 911/2020, que eleva para 50% a alíquota da CSLL devida por instituições financeiras; e o PL 1522/2020, que aumenta em 20 pontos percentuais a alíquota paga por empresas de mineração com faturamento anual superior a R$ 10 milhões entre os anos de 2020 e 2030.
Os bancos já recolhem a CSLL a uma alíquota majorada em relação ao restante da economia. As instituições financeiras pagam 20% de CSLL, enquanto o restante recolhe o tributo à alíquota de 9%. Se o Congresso aprovar os projetos determinando a exigência imediata da contribuição majorada, tributaristas alertam que as empresas podem acionar o Supremo Tribunal Federal (STF). Isso porque a Constituição determina que contribuições sociais previdenciárias – que é o caso da CSLL – só podem ser exigidas 90 dias após a publicação da lei que as institui.Cobrança de contribuições previdenciárias deve respeitar anterioridade de 90 dias
Por enquanto o PL 911/2020 não traz especificações sobre a partir de quando será cobrada a alíquota majorada de CSLL para instituições financeiras. O texto inicial do senador Weverton (PDT-MA) diz apenas que a lei entra em vigor na data da publicação.
Já o PL 1522/2020 especifica que a nova alíquota será cobrada somente após três meses. Segundo o texto inicial da senadora Zenaide Maia (PROS-RN), a lei entra em vigor na data da publicação, mas só produz efeitos depois de 90 dias. Por outro lado, em relação ao princípio da isonomia entre os contribuintes, o STF já julgou como constitucionais algumas leis que aumentaram alíquotas apenas para um setor específico da economia. Ainda assim, o advogado Fabio Calcini, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advogados, avaliou que as empresas poderiam argumentar no STF que a majoração a 50% é desproporcional e irrazoável, de forma que teria caráter confiscatório e desrespeitaria a capacidade contributiva das instituições financeiras. Isso porque metade de todo o lucro auferido pelas empresas seria destinado aos cofres públicos.Contribuintes podem alegar caráter confiscatório
“Aparentemente o tratamento diferenciado em algumas ocasiões o Supremo já discutiu e entendeu que não havia violação à igualdade ou à isonomia. Por outro lado, em que medida? Até quanto é possível juridicamente essa diferenciação e o aumento de uma tributação que já é alta?”, questionou.
No mesmo sentido, o tributarista Flavio Carvalho, sócio do escritório Schneider Pugliese, admitiu que a discussão sobre a cobrança majorada das instituições financeiras é complexa. Entretanto, ressaltou que a elevação a 50% é acentuada. “Me parece bastante próximo do confisco”, afirmou. Em 2018, no RE 599.309, o Supremo considerou constitucional a alíquota adicional de 2,5% na contribuição previdenciária incidente sobre a folha de salários de instituições financeiras instituída pela lei 7.787/1989. No mesmo ano, ao apreciar o RE 656.089, o plenário entendeu que é constitucional o aumento de 3% para 4% da Cofins para instituições financeiras, determinado pela lei 10.684/2003. Nos dois REs, a maioria dos ministros entendeu que a alíquota diferenciada não viola o princípio da isonomia nem o da capacidade contributiva. Votaram nesse sentido os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Cármen Lúcia e Dias Toffoli. Ficou vencido apenas o ministro Marco Aurélio. Jamile Racanicci – Repórter(JOTA - 23/04/2020)