A análise dos documentos que embasaram o debate e a subsequente aprovação da Lei Complementar n° 160/2017 (LC 160/17) revela que a lei teve como objetivo encerrar o contencioso vinculado à guerra fiscal de ICMS.

Da perspectiva tributária estadual, a LC 160/17 concede “perdão” aos benefícios conferidos de forma inconstitucional pelos estados ao longo dos anos e garante transparência e igualdade entre os entes federativos para os futuros incentivos de ICMS. Em âmbito federal, os artigos 9º e 10 da lei pretenderam encerrar o debate sobre se um incentivo fiscal de ICMS pode ou não ser qualificado como subvenção para investimento e, portanto, excluído da base de cálculo de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins.

O parecer da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, ao discutir o projeto que resultou na LC 160/17, talvez tenha sido o mais enfático sobre o objetivo da lei: “tem sido controvertido o enquadramento dos benefícios fiscais de ICMS como subvenção para custeio ou para investimento (...) O que o SCD nº 5, de 2017, pretende é encerrar a discussão sobre a matéria, mediante a inserção de dispositivos no art. 30 da Lei nº 12.973, de 2014, para prever que os benefícios fiscais relativos ao ICMS, tenham sido ou não concedidos no âmbito da ‘guerra fiscal’, serão considerados subvenção para investimento. Com isso, serão afastados os ônus decorrentes da incidência do IRPJ, da CSLL, da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins”.

Fica claro que a intenção do legislador foi eliminar a insegurança jurídica em torno da qualificação de um incentivo fiscal como subvenção para investimento ou para custeio, dadas as inúmeras discussões que se arrastavam por anos nos tribunais administrativos e judiciais sobre a matéria (muitas vezes adotando critérios não previstos na legislação para qualificar benefícios fiscais de ICMS como uma espécie de subvenção ou outra), determinando que todo e qualquer benefício fiscal de ICMS receberá o tratamento de subvenção para investimento. Para reforçar tal qualificação jurídica, o novo parágrafo 4° do art. 30 da Lei n° 12.973/14 ainda enfatiza que é “vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstos neste artigo” para o enquadramento dos benefícios fiscais de ICMS como subvenções para investimento.

Parecia que a discussão tinha finalmente terminado. Contanto que os estados cumprissem os requisitos de registro e depósito dos benefícios fiscais nos termos da LC 160/17 e que os contribuintes alocassem a “receita de subvenção” para a reserva de incentivos fiscais, o valor do benefício de ICMS poderia também ser excluído da base de cálculo de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins.

Essa posição foi, inclusive, confirmada pela própria Receita Federal na Solução de Consulta Cosit nº 11/20, que, apesar da clareza da LC 160/17, foi bem recebida pela comunidade jurídica como sendo uma indicação definitiva do fim de tal discussão, com vistas a alcançar algum nível de segurança jurídica. O entendimento favorável da autoridade fiscal, contudo, teve vida curta.

Na recente Solução de Consulta Cosit nº 145/20, publicada em dezembro, a Receita Federal reacendeu o debate sobre a qualificação dos benefícios de ICMS como subvenção para investimento ou custeio. Nela, o órgão afirma que, para ser excluído da apuração de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins, o incentivo estadual deve necessariamente ser concedido como “estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos”.

Seguindo essa visão, a intenção da LC 160/17 foi unicamente afastar os requisitos de sincronia e vinculação que eram até então exigidos pela autoridade fiscal para identificar uma subvenção para investimento – requisitos previstos no Parecer Normativo nº 112/78 e no artigo 198, §7º, da Instrução Normativa n° 1.700/17.

A nova posição da Receita Federal volta a “selecionar” um conjunto específico de benefícios de ICMS que podem receber o tratamento tributário de “subvenção para investimento”, o que exclui aqueles que não apresentam uma clara contrapartida em empreendimento econômico.

Independentemente de qualquer juízo de valor sobre a opção de política fiscal do Poder Legislativo na edição da LC 160/17 (que, vale lembrar, teve os vetos do Poder Executivo sobre essa matéria derrubados), parece evidente que a Solução de Consulta Cosit nº 145/20 está desrespeitando o texto legal e o objetivo para o qual a lei complementar foi concebida, tornando-a completamente ineficaz – além de reformar manifestação recente do próprio órgão em sentido contrário, acentuando o cenário de insegurança jurídica que tanto prejudica o ambiente tributário brasileiro.

Assim, a mais recente interpretação da autoridade fiscal quer levar à conclusão de que a LC 160/17 foi editada unicamente para afastar os requisitos infralegais e, desde sempre, ilegais da Receita Federal (sincronia e vinculação), os quais nunca poderiam ter sido exigidos por falta de base legal para tanto. É claro que não é preciso que o legislador edite uma norma com força de lei complementar para afastar uma regra inserida no sistema tributário, ilegalmente, por instrução normativa, que sequer tem força de lei.

Como é cada vez mais comum no Brasil, parece que a Receita Federal não concorda com a política fiscal escolhida pelo legislador e, sem qualquer amparo legal, se agarrará a essa discussão, arrastando o contencioso por mais uma década, contrariando o texto da lei complementar e as posições já sedimentadas nos tribunais superiores sobre a impossibilidade de incidência de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins sobre benefícios fiscais de ICMS, conforme Tema 843, julgado sob o regime de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, e os Embargos de Divergência em Recurso Especial n° 1.517.492, julgados pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça.

Vê-se que o Poder Executivo – dessa vez por meio da Receita Federal – insiste em atuar de forma dissonante do Poder Legislativo (que, como mencionado anteriormente, derrubou o veto do próprio Poder Executivo quando da sanção da LC 160/2017) e do Poder Judiciário, contribuindo para um cenário de complexidade, custo e insegurança jurídica.

Situações como essa reforçam a necessidade de uma reforma tributária mais ampla, mas também servem de alerta para o risco de que ela não atinja seus efeitos plenos enquanto persistir a mentalidade contenciosa da Receita Federal, que adota sua interpretação individual em evidente conflito com o espírito do legislador.