Quais são os impactos jurídicos e possíveis questões legais com a chegada da epidemia ao Brasil?

Imagine a cena de uma típica chegada ao trabalho em tempos de covid-19. Logo na entrada, antes de passar o crachá e ter o acesso liberado, você provavelmente terá um outro tipo de verificação: um check-point com uma enfermeira ou outro profissional da área que vai analisar a sua situação de saúde. E o meio mais fácil de ver como você está é a medição da temperatura. Sim, essa será uma condição fundamental para sua entrada e que pode detectar se o funcionário tem ou não uma infecção.

Parece um cenário de ficção algum filme ou livro de Albert Camus (A Peste) ou José Saramago (Ensaio sobre a Cegueira), mas é vida real. Algumas empresas já estão fazendo isso lá fora e pretendem implementar a medida por aqui. Tudo isso por conta da possibilidade de o número de casos da doença explodir nas próximas semanas. Por enquanto, ninguém admite abertamente a medida, mas o assunto já é tema de centenas de pedidos de orientação a advogados trabalhistas nos escritórios de advocacia do país.

“Estou diariamente recebendo consultas sobre o coronavírus. Como nós atendemos multinacionais, elas já têm um plano de contingência montado. Estão na nossa frente, a doença chegou lá antes. Eles nos perguntam sobre a aplicabilidade deste tipo de plano no Brasil”, explica a advogada trabalhista e sócia do escritório Demarest Advogados em São Paulo, Cássia Pizzotti.

Além da medição da temperatura, o funcionário que tiver algum sinal de coriza ou tosse pode receber o pedido/ordem de que vá ao departamento médico ou algum hospital para fazer o teste que detecta o novo coronavírus. A volta ao trabalho fica condicionada ao resultado do exame.

“O que se recomenda é que isso seja feito por pessoas da área médica, que adotem todas essas providências. Nós estamos agora numa fase em que a mera existência de sintomas respiratórios já tem feito as empresas adotarem medidas para que o empregado faça o teste. E, se der positivo, entrar em quarentena", afirma Pizzotti.

Nesse momento da epidemia, a percepção dos advogados é de que as empresas estão trabalhando com três fases em relação ao coronavírus: as duas primeiras são falar e incentivar ações que ainda são voluntárias e discutir o que é recomendado. Muitas já estão fazendo ou pensando na fase três, a das medidas compulsórias que citamos no início da reportagem.

Voltando para as duas primeiras fases, segundo os especialistas, é recomendado que as empresas passem para os empregados as instruções básicas de higiene, como lavar as mãos, uso do álcool gel e limpeza frequente das estações de trabalho, como computadores e especialmente mouse e cadeiras.

“A empresa tem que dar garantia de segurança ao empregado, ao mesmo tempo que faz a manutenção das operações. Tendo conhecimento de que existe uma pandemia, os empregadores devem zelar, dentro da relação do trabalho, a evitar ao máximo que suas ações negligenciem as recomendações do Ministério da Saúde”, afirma Caroline Marchi, advogada trabalhista do escritório Machado Meyer.

Em território brasileiro, duas medidas do governo regulamentam a questão e indicam possíveis caminhos jurídicos a serem adotados. A portaria 356/2020 foi publicada pelo Ministério da Saúde na semana passada. Ela regulamenta a Lei 13.979/20, que estabelece situações de emergência de saúde pública que evitem novos casos por aqui.

Segundo o texto, ficam estabelecidas as normas de isolamento para pessoas sintomáticas ou assintomáticas, que estejam em investigação clínica laboratorial. O isolamento tem um prazo máximo de 14 dias e deve ser realizado em domicílio, conforme o quadro de cada paciente.

Além disso, a medida trata da quarentena, que pode ser adotada pelo prazo de até 40 dias, podendo se estender pelo tempo necessário, de acordo com as autoridades de saúde brasileiras.

"A pessoa que tem caso confirmado [de coronavírus], com dados laboratoriais, ela e os familiares que vivem na mesma casa devem ficar em isolamento e as pessoas que tiveram contato devem ser notificadas", destacou o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Wanderson de Oliveira.

A norma estabelece ainda que a realização compulsória de exames médicos ou tratamentos específicos dependerá de um profissional de saúde.

“É importante que as empresas sigam as recomendações e façam um projeto, um plano de contingência nessa situação, até para não aumentar riscos de serem acusadas de negligência, de ter feito com que os empregados ficassem mais expostos a doenças, o que pode gerar eventuais futuras ações ou reivindicações sindicais, ou até mesmo do próprio Ministério Público do Trabalho”, afirma Marchi.

A coordenadora da área trabalhista do Tess Advogados, Cláudia Ayabe, explica que as recomendações, tanto do Ministério da Saúde quanto da Organização Mundial da Saúde, é de que haja uma flexibilidade nas políticas internas das empresas.

“Esse período, tanto de isolamento quanto de quarentena ou submissão de exames, é considerado como falta justificada ao trabalho. Mesmo que o empregado não tenha um atestado médico”, explica Ayabe.

A mesma legislação trabalhista estabelece casos em que o empregado é obrigado a realizar exames. O artigo 168 da CLT e a Portaria 3.214/78 determinam que eles devam ser feitos em casos em que haja riscos à coletividade dos empregados, algo que é feito pelo médico ocupacional da empresa.

Na semana passada, técnicos do Ministério da Saúde, Agência Nacional de Saúde Suplementar e operadoras de planos de saúde fizeram um acordo para incluir o exame que detecta o covid-19 na cobertura mínima obrigatória.

Home Office

Outra maneira de evitar a contaminação é a suspensão e proibição das viagens nacionais e internacionais. Mas a medida mais popular é a implementação do home office (teletrabalho), algo relativamente comum nos grandes centros, mesmo antes da epidemia.

De acordo com a Reforma Trabalhista de 2017, o home office precisa ser acordado entre patrões e empregados para permitir a continuidade do trabalho.

“Pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o home office precisa ser estabelecido entre o empregador e o empregado. Só que diante da epidemia do coronavírus, a empresa pode flexibilizar esta parte da CLT para conversar com os empregados, na intenção de evitar a doença. O trabalho em casa é uma medida recomendada”, diz Ayabe.

“Apesar de ter um impacto na rotina, para os direitos trabalhistas não muda nada. O sujeito continua trabalhando em casa e recebendo. Isso não gera repercussão nenhuma no contrato de emprego. Começaria a gerar efeito se o empregador dissesse para não trabalhar na empresa, nem em lugar nenhum, porque não tem como exercer uma atividade de home office”, analisa Fábio Guariero, advogado trabalhista e professor do Damásio Educacional.

Para os especialistas, os cargos que demandam mais home office são os de gerenciamento. Outros, como o trabalho em uma linha de produção, por exemplo, a empresa terá que arcar com o tempo parado.

“Se isso acontecer, o empregado tem direito de continuar a receber, mesmo não trabalhando, porque está cumprindo uma ordem patronal. Isso é o que a gente chama de interrupção do contrato. Não se trabalha, mas se recebe salário”, diz Guariero.

(LexLatin - 13/03/2020)