Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), um tema bastante discutido tem sido a seletividade aplicável ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Em meio a amplos debates em torno da reforma tributária e mudanças no sistema constitucional tributário – incluindo proposta que pretende acabar com a seletividade do imposto sobre consumo – ainda não está pacificada a questão sobre o alcance da seletividade para o ICMS.

A CF/88 adotou a técnica da seletividade para o ICMS e para o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Entretanto, o texto constitucional utilizou expressões diferentes ao tratar da aplicação dessa técnica para cada imposto, dispondo que o IPI “será seletivo, em função da essencialidade do produto” (art. 153, §3º, I) e o ICMS “poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços(art. 155, §2º, III).

Em ambos os casos, o critério selecionado pelo constituinte para orientar a implementação da seletividade pelos entes políticos foi a essencialidade, isto é, produtos essenciais devem ser tributados de forma menos gravosa, enquanto produtos menos essenciais (supérfluos) serão submetidos à tributação mais onerosa.

Analisando-se o texto constitucional, a principal questão que se coloca é: ao utilizar a palavra “poderá”, a CF/88 haveria conferido ao legislador estadual a faculdade de adotar a seletividade na fixação de alíquotas do ICMS? Em caso positivo, qual seria o alcance dessa faculdade?

Essa importante controvérsia está sendo analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) nº 714.139, Tema 745 da Repercussão Geral.

No caso concreto, o contribuinte requer o reconhecimento da inconstitucionalidade da alíquota de 25% incidente sobre o fornecimento de energia elétrica e a prestação de serviço de comunicação, instituída pelo estado de Santa Catarina (SC), onde a alíquota geral é de 17%. Ou seja, tributa-se energia elétrica e serviço de comunicação com uma carga muito superior à da tributação geral, aplicando-se o mesmo patamar adotado para produtos expressamente considerados supérfluos pela legislação (armas, munições, perfumes, cigarro etc.)[1].

Essa prática não é restrita a Santa Catarina. Outros estados se apoiam na argumentação de que a seletividade é técnica facultativa para o ICMS e instituem alíquotas majoradas para produtos que são claramente essenciais.

O contribuinte recorrente no Tema 745 sustenta a inconstitucionalidade da legislação de Santa Catarina que utiliza a alíquota onerosa aplicável a produtos supérfluos para tributar também energia elétrica e serviços de comunicação, afrontando a seletividade imposta pela CF/88. No entendimento do contribuinte, ainda que a adoção da seletividade seja facultativa para o ICMS, uma vez estabelecidas alíquotas diferenciadas (em detrimento de uma alíquota única), a essencialidade é critério obrigatório a ser seguido pelos estados. Com base nessa mesma argumentação, as legislações de diversos estados que impõem alíquotas exorbitantes a itens essenciais são questionadas no Poder Judiciário. Os estados defendem que, no caso do ICMS, a CF/88 conferiu ao legislador estadual o poder de optar por seguir ou não a técnica da seletividade ao fixar alíquotas.

A Procuradoria-Geral da República apresentou manifestação pelo parcial provimento do recurso, concordando que a legislação catarinense é incompatível com o princípio da seletividade em função da essencialidade ao prever alíquotas superiores à alíquota geral para energia elétrica e serviços de comunicação. Recomendou, ainda, a modulação dos efeitos da decisão.

Até o momento, votaram os ministros Marco Aurélio (relator), Alexandre de Moraes (que inaugurou divergência), Dias Toffoli e Cármen Lúcia (os quais acompanharam o relator). O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes e deve ser retomado em breve.

O relator, ministro Marco Aurélio, entendeu ser inconstitucional a legislação catarinense que fixou a alíquota de 25% para energia elétrica e serviço de comunicação por considerá-los bem e serviço nitidamente essenciais, determinando a incidência da alíquota geral de 17%. Na visão do ministro, “a facultatividade do método não significa inexistir, no preceito, núcleo essencial a ser preservado”, de modo que “adotada a seletividade, o critério não pode ser outro senão a essencialidade”. A partir do momento em que o legislador estadual passou a contemplar alíquotas diferenciadas para o ICMS, a gradação das alíquotas deve necessariamente ser determinada pela essencialidade.

O ministro Alexandre de Moraes proferiu seu voto dando parcial provimento ao recurso e rejeitou somente a aplicação da alíquota de 25% sobre os serviços de comunicação. Com relação à energia elétrica, o ministro considerou que a legislação estadual “aplicou o princípio da seletividade do ICMS (...) em conjunto com o princípio da capacidade contributiva imprimindo-lhe efeitos extrafiscaisao fixar a alíquota de 12% para classes em que o consumo é considerado essencial, desestimulando o consumo desenfreado e o desperdício de energia.

Os níveis elevados de consumo de energia mais significativos e relevantes, no entanto, não refletem desperdício, mas sim uso industrial, comercial e produtivo, reiterando e não subtraindo a sua essencialidade.

O voto do ministro Marco Aurélio, acompanhado pelos dos ministros Dias Toffoli e Cármen Lúcia, refletiu a inquestionável essencialidade da energia elétrica e do serviço de comunicação, o que se tornou ainda mais evidente durante a pandemia.

É claro que, no bojo da aplicação da seletividade, o princípio da capacidade contributiva e a extrafiscalidade são contemplados em alguma medida, pois produtos supérfluos adquiridos pelas classes mais abastadas sofrem tributação mais onerosa. Contudo, não há como se apoiar nesses outros preceitos da CF/88 para permitir que energia elétrica e outros produtos essenciais sejam tributados em patamares equivalentes, e por vezes mais elevados, aos de produtos evidentemente supérfluos, como armas, cosméticos, cigarros, bebidas alcóolicas, entre outros.

Apesar de acompanhar o relator no mérito, o ministro Dias Toffoli propôs a modulação dos efeitos da decisão para que ela tenha eficácia somente a partir do início do próximo exercício financeiro, resguardando as ações judiciais ajuizadas até a véspera da publicação da ata do julgamento de mérito.

Essa discussão não é relevante apenas para energia elétrica e serviços de comunicação. Os estados costumam instituir tributação elevada para outros produtos notadamente essenciais, ignorando a CF/88.

Nesse sentido, o próprio ministro Marco Aurélio, ao apresentar justificativas que confirmam a essencialidade da energia elétrica e dos serviços de comunicação (justificativas essas até mesmo dispensáveis), traz à baila a Lei nº 7.883/89, que trata das limitações ao direito de greve. Essa lei, em seu artigo 10, inciso I, considera como serviços ou atividades essenciais “tratamento e abastecimento de água, produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis, além de outras atividades listadas nos demais incisos.

Combustíveis são um exemplo de produtos muitas vezes tributados em patamares altíssimos. O estado do Amazonas, por exemplo, aplica a alíquota de 25% para operações com gás natural, gasolina e álcool carburante, na mesma alínea que contempla joias, automóveis de luxo, armas, munições e outros bens supérfluos. Diversos outros exemplos podem ser encontrados nas legislações de todos os estados.

Os contribuintes devem ficar atentos ao desfecho desse importante caso e avaliar a estratégia de ingressar com medidas judiciais para afastar a incidência inconstitucional de alíquotas majoradas de ICMS para produtos notadamente essenciais, especialmente considerando a possibilidade de modulação de efeitos de eventual decisão final do STF.

 

[1] Em relação ao fornecimento de energia elétrica, além da alíquota geral de 25%, o estado de Santa Catarina estabeleceu tratamento mais benéfico para algumas situações específicas.