Por Leonardo Alfradique Martins e André Araújo de Andrade

Os fundos orçamentários são uma forma clássica de individualizar e vincular receitas para um determinado fim. Seu uso remonta à época do Brasil colonial e ganhou mais tração com a crescente descentralização das políticas públicas entre os atores políticos nacionais (União, estados e municípios).

Esses fundos eram concebidos para agilizar a gestão e garantir recursos públicos para finalidades de interesse estratégico nacional, como ensina Camillo de Moraes Bassi, em seu estudo Fundos especiais e políticas públicas: uma discussão sobre a fragilização do mecanismo de financiamento:

“Fica claro que os fundos foram criados para flexibilizar a máquina pública, mediante uma gestão descentralizada dos recursos para finalidades preestabelecidas. A reboque, surgiram as receitas vinculadas, entendidas como um ‘antídoto’ à incerteza financeira, uma garantia de recursos.”

Os fundos passaram a fazer parte da Constituição de 1934, quando se criou o Fundo de Educação, obrigatório para estados, municípios e Distrito Federal e formado, de acordo com o texto constitucional, pelas “sobras das dotações orçamentárias acrescidas das doações, percentagens sobre o produto de vendas de terras públicas, taxas especiais e outros recursos financeiros”.

No período compreendido entre 1934 e 1988, diversos fundos foram criados com finalidades variadas, como o Fundo Nacional de Desenvolvimento (1986), Fundo da Escola de Administração Fazendária (1971), Fundo da Central de Medicamentos (1973) e Fundo de Atividades Espaciais (1985), entre tantos outros em âmbito estadual e municipal.

A Constituição Federal de 1988 trata timidamente do tema, fazendo apenas menção à obrigatoriedade de os fundos constarem da Lei Orçamentária Anual (LOA) e da impossibilidade de vinculação às receitas dos impostos, conforme disposto nos artigos 165, §4º, e 167, IV, respectivamente.

Além dessas disposições, o artigo 36 da atual Constituição Federal impôs que todos os fundos vigentes na data de sua promulgação deveriam ser ratificados pelo Congresso Nacional em até dois anos, salvo os que detinham receitas advindas de isenções fiscais integrantes de patrimônio privado e os de interesse à defesa nacional.

No entanto, mesmo com a expressa determinação constitucional, os fundos foram mantidos com base na Lei nº 4.320/64, recepcionada como lei complementar, que regula as normas financeiras e orçamentárias da União e dos demais entes federativos.

Se bem geridos e administrados, com a efetiva aplicação dos recursos arrecadados em suas finalidades específicas, os fundos trazem resultados animadores.

Em estudo realizado sobre o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza no estado do Mato Grosso, os pesquisadores viram que “os resultados das pesquisas anteriores sugerem que existe uma relação entre a instituição do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza e a diminuição dos indicadores de pobreza do Estado”.[1]

De acordo com dados empíricos, porém, os fundos orçamentários não têm mais a relevância e a pertinência de outrora.

O Decreto nº 93.872/86 modernizou e agilizou o sistema financeiro brasileiro. A criação da Conta Única do Tesouro Nacional, entre outras medidas, também promoveu um alinhamento direto entre a origem e o destino final dos recursos, diminuindo drasticamente a demora e a burocracia para a chegada deles aos seus efetivos destinos.

Os fundos passaram a não ser tão atrativos para o gerenciamento de recursos públicos. Como bem apresentado por Camillo de Moraes Bassi, inovações na gestão de recursos públicos acabaram “tornando os fundos dispensáveis tanto à vinculação de receitas como à acumulação dos saldos (superavit financeiro)”.

No estudo, Camillo de Moraes Bassi comenta que a dependência dos fundos para uma gestão célere da administração direta (autonomia financeira do órgão gestor), outra motivação arraigada à sua utilização, perdeu, por completo, o sentido. Na verdade, tornou-se obsoleta perante os avanços já comentados na administração financeira”.

Além do mais, a falta de transparência na gestão, os frágeis mecanismos de controle, a pouca informação disponível sobre o processo de eleição das despesas a serem incorridas e a duvidosa aplicação dos recursos nas finalidades para as quais os fundos foram instituídos (desvio de finalidade), acabaram por torná-los ultrapassados.

Soma-se a isso o fato de não existir nenhuma obrigação legal sobre a necessidade de serem gastos todos os recursos acumulados no mesmo exercício financeiro da arrecadação, o que faz com que grande parte dos fundos acumulem quantias consideráveis que acabam sendo repassadas para outras finalidades.

Há, inclusive, expressa autorização na Lei de Responsabilidade Fiscal para a acumulação de saldos nesses fundos orçamentários e a utilização de tais quantias em exercícios diversos:

“Art. 8o Até trinta dias após a publicação dos orçamentos, nos termos em que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias e observado o disposto na alínea do inciso I do art. 4o, o Poder Executivo estabelecerá a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolso.

Parágrafo único. Os recursos legalmente vinculados a finalidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso.”

Com base nessa tolerância legal, se legitimou uma prática que já vinha ocorrendo na gestão desses fundos: não aplicar necessariamente os recursos arrecadados nas finalidades de interesse público estratégico para as quais eles foram instituídos.

O que se tem visto é a frequente flexibilização das leis de criação dos fundos para permitir que o montante acumulado seja destinado ao custeio de outras finalidades, inclusive da máquina pública, como pontua Camillo de Moraes Bassi:

“(...) os fundos especiais foram concebidos para agilizar a gestão e garantir recursos públicos para áreas/setores específicos, sob a alegação de serem estratégicos aos interesses nacionais. Nessa condição, faz pouco (ou nenhum) sentido um fundo titulado especial executar gasto com pessoal ou gasto obrigatório alheio ao pessoal, uma vez que estes estão associados ao custeio da ‘máquina pública’.”

Fazem coro com essa importante anotação os dados levantados pelos pesquisadores Sílvio da Costa Magalhães Filho, Luzinete da Silva Magalhães e Fernanda da Silva Rodrigues que, embora estivessem examinando o FECP/MT, demonstram que o uso dos recursos dos fundos para o custeio estatal acaba por interferir negativamente na promoção das finalidades para as quais foram instituídos:

“No entanto observa-se que a partir de 2015 outras vinculações para o custeio da máquina pública e pagamento da dívida se torna corriqueiro e os recursos a ser destinados ao Fundo apresenta (sic) uma redução significativa. Desta forma em 2015, 25,68% do valor total arrecadado foi destinado para a cobertura do déficit de efeitos irradiados relacionado a desvinculação de até 30% dos recursos arrecadados para o pagamento da Dívida Pública do Estado (...).

Em 2016, além das vinculações já citadas, passou a ser vinculada a arrecadação uma parcela a ser destinada a pagamento de gastos com pessoal da Secretaria de Estado de Trabalho e Assistência Social – SETAS (...).”

Essa flexibilização também vem sendo realizada pela jurisprudência dos tribunais. Há decisões, por exemplo, que dispensam a imposição constitucional de haver lei complementar estadual prévia estabelecendo as condições para a instituição e funcionamento do fundo:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ESTADUAL 2.826/03 - LEI DE INCENTIVOS FISCAIS E EXTRAFISCAIS – CONTRIBUIÇÃO FINANCEIRA PARA O FTI – INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL – IMPROCEDÊNCIA – INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL – IMPROCEDÊNCIA – CONSTITUCIONALIDADE DOS DISPOSITIVOS IMPUGNADOS. 1. Preliminar de perda do objeto acolhida, para julgar prejudicada a presente ação direta de inconstitucionalidade, quanto ao artigo 43, § 1.º, inciso III, artigo 47, § 2.º, artigo 45, artigo 25, § 2.º, e ao artigo 47, todos da Lei 2.826/03. 2. Relativamente a alegação de inconstitucionalidade formal, verifica-se que a exigência de lei complementar encontra-se atendida com a edição da lei 4.320/64, que dispõe sobre normas gerais sobre Direito Financeiro, tratando genericamente sobre a instituição de fundos, cabendo à lei específica o estabelecimento das regras sobre a instituição de determinado fundo, possuindo a lei 2.826/03, compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro. 3. No que tange à inconstitucionalidade material, constata-se a improcedência das alegações, porquanto a contribuição financeira ora questionada não se enquadra na definição de tributo, a qual é feita pelo artigo 3.º do Código Tributário Nacional e pelo artigo 9.º da Lei 4.320/1964. 4. A compulsoriedade é essencial para caracterizar a obrigação tributária, uma vez que a prática de fato previsto em norma jurídica tributária faz surgir, de maneira automática e independente da vontade do contribuinte, o dever de uma prestação pecuniária. 5. A contribuição financeira prevista no artigo 19, inciso XIII, alínea c, da lei impugnada, constitui apenas uma condição para que determinada empresa possa ser beneficiadas pela política de incentivos fiscais do Estado do Amazonas. 6. Ação direta de inconstitucionalidade parcialmente extinta, sem resolução de mérito e, no outro ponto, julgada improcedente. (TJ-AM 00015708720108040000 AM 0001570-87.2010.8.04.0000, Relator: Jorge Manoel Lopes Lins, Data de Julgamento: 22/09/14, Tribunal Pleno)[2]

No entanto, mesmo com a grande problematização acerca do uso dos fundos, o que se vê na atualidade é que “os Estados brasileiros têm, cada vez mais, instituído fundos voltados à sua manutenção, custeio e investimento”, como comenta Igor Bastos de Almeida Dias em seu artigo A instituição de "fundos estaduais" como alternativa para arrecadação de receita destinada à segurança pública.

 

Como exemplo, pode-se citar o recente debate na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) para a desvinculação das receitas de fundos estaduais e alteração da obrigatoriedade de aplicação dos seus recursos, de forma que, se não aplicados ao fim do exercício de sua arrecadação, sua destinação fique a critério do governador do estado. Isso permite que os recursos arrecadados possam ser aplicados no pagamento de salário dos servidores.

Há luz no fim do túnel quando se vê no próprio parlamento fluminense iniciativas de extinção de fundos orçamentários, justamente em virtude da sua obsolescência, como bem colocado na exposição de motivos do Projeto de Lei Complementar nº 18/20 para a extinção de um dos fundos estatais:

“O que muitos esquecem é que ao acabar com a vinculação de receitas não significa que determinado órgão deixará de receber os recursos, mas que deverá demonstrar que suas despesas são mais prioritárias que outras. Assim, a boa prática reconhecida internacionalmente por meio do princípio orçamentário da não-afetação das receitas (não vinculação de recursos), é a de que as prioridades devem ser debatidas a cada ano quando da elaboração e discussão da lei orçamentária.

O mais intrigante é observar parlamentares a favor de fundos quando a palavra final sobre qualquer destinação de recursos deve ser do legislador do presente (e não do passado). Desta forma, uma das consequências práticas da extinção dos fundos é o reforço do papel do atual parlamento.

Além disso, a existência de um fundo está antecipadamente destinando recursos, de forma fixa e continuada, sem saber quais serão as prioridades futuras.

Em geral a legislação dos fundos impede que os recursos sejam utilizados para outras finalidades que não tenham relação com atividades dos órgãos que os administram. Os Fundos Especiais dos Poderes (Assembleias e Câmaras, Tribunais de Contas, Ministério Público) e outros vinculados a órgãos (Procuradoria, Defensoria, por exemplo), isto é, sem vínculo com áreas sociais prioritárias como segurança, saúde, educação e assistência social devem ser os primeiros a serem extintos. Trata-se de uma aberração sob o contexto moral bem como contraria as boas práticas orçamentárias.

A extinção desses fundos possibilitará a transferências de recursos para o Tesouro Estadual considerando os saldos de caixa livres no final de 2019 da ordem de R$ 1,5 bilhão já deduzidas as obrigações financeiras existente.”

É, portanto, mais do que o momento de se impedir que os recursos arrecadados pelos fundos venham a ser utilizados deliberadamente para o custeio geral da máquina pública em detrimento dos relevantes fins sociais para os quais foram instituídos.

Se há reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal para que as taxas de serviços se atenham a custear a atividade estatal para a qual foram criadas, da mesma forma não se pode legitimar o corriqueiro redirecionamento da arrecadação de fundos para o custeio geral da administração pública, sob pena de transformar os fundos em nova fonte de custeio do erário – função essa típica dos impostos.

Cenário diferente seria permitir destinar sobras (superavit) da arrecadação de fundos para o custeio geral do erário, quando comprovadamente a finalidade específica atrelada a esse fundo estivesse plenamente atendida.

 


[1] FILHO, Sílvio da C. M., MAGALHÃES, Luzinete da S. e RODRIGUES, Fernanda da S. “Arrecadação e Investimentos do Fundo Estadual de Combate e Erradicação da Pobreza no Estado do Mato Grosso: Uma investigação do período de 2013-2016”. Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social, v. 16 n. 1 (2018), ABEPSS.

[2] Citado por Igor Bastos de Almeida Dias em seu artigo A instituição de "fundos estaduais" como alternativa para arrecadação de receita destinada à segurança pública