Iara Ferfoglia G. Dias Vilardi Em decisão tomada em outubro do ano passado, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que os precatórios dados em garantia no âmbito de execuções fiscais devem ser considerados pelo seu valor de mercado e não pelo valor de face. Trata-se de decisão que, sem dúvidas, inibirá o aquecido mercado de compra e venda de precatórios. O precatório é uma comunicação dada pelo Poder Judiciário a respeito do pagamento de uma determinada quantia ao ente estatal responsável, que foi condenado em processo judicial a incluir esse montante na sua previsão orçamentária. A criação desse instituto remonta à Constituição de 1934, embora suas atuais características e regras para pagamento tenham sido delineadas pelo artigo 100 da Constituição Federal de 1988 - já alterado duas vezes. Todavia, tendo em vista a inobservância de tais regras (constitucionais) pelos entes estatais, tornaram-se títulos cuja data de pagamento é incerta, o que fez surgir um mercado paralelo de compra e venda de precatórios. Nesse mercado, os credores originais, cansados de esperar pela sua vez de receber seus créditos, passaram a vendê-los com deságio ao redor de 70% em relação ao seu valor de face a interessados, em geral, empresas que utilizam esse ′título de crédito futuro′ para diversas finalidades, entre elas, o seu oferecimento como garantia de execuções fiscais. Como isso era aceito pelos tribunais, as transações envolvendo esses títulos tiveram grande impulso nos últimos anos. Dessa maneira, o recente precedente é um verdadeiro banho de água fria tanto para os credores de precatórios - que viam nessas transações uma possibilidade de receberem algum crédito, como para os interessados na compra do papel - que encontravam uma forma vantajosa, viável e legal de equilibrar suas contas. A decisão do STJ teve por base um precedente anterior da Corte e defendeu que, dada a impossibilidade de compensação entre precatório e débito tributário, naquela situação específica - uma vez que o Estado do Rio Grande do Sul (que cobrava o débito tributário) não se confundia com o Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul - Ipergs (devedor do precatório) - deveria ocorrer avaliação judicial da garantia, que, portanto, não poderia ser considerada pelo seu valor de face, mas pelo valor de mercado (isto é, com deságio). Muito embora os argumentos que lastrearam a decisão representem raciocínio jurídico lógico, que encontra respaldo em determinada interpretação da lei, não é razoável que o Estado, após impor por meio de emendas constitucionais verdadeiras moratórias aos credores de precatórios durante esses anos - sendo, a mais recente, aquela decorrente na Emenda Constitucional nº 62/2009 -, continue a ser beneficiado por decisões dessa natureza, até porque, como visto, nesses casos não há prejuízo para o Estado e, muito menos, para o interesse público, já que eventual barganha em torno do preço a ser pago pelo crédito limita-se à negociação particular entre cedente do crédito do precatório e cessionário. Mercado paralelo. Ora, o mercado paralelo de precatórios surgiu justamente em razão da conduta do próprio Estado. E se, hoje os particulares tentam obter vantagens comerciais sobre tais títulos, é porque o Poder Público, diferentemente do que deveria ocorrer, tornou-se o pior tipo de devedor, pois, além de não pagar o que deve, utiliza-se ilegitimamente de suas prerrogativas legais e da (já banalizada) bandeira do interesse público, para frustrar a expectativa dos credores, que, para se tornarem titulares de precatórios, travaram longa e morosa batalha judicial. Sob esse prisma, é imprescindível que o Poder Judiciário não se limite a interpretar de forma fria e isolada a lei, mas a contextualize dentro do cenário político e econômico atual, utilizando a legislação vigente de modo a dar efetividade ao direito do cidadão. No caso mencionado, por exemplo, seria plenamente legal (além de moralmente justa) a aceitação da garantia pelo valor de face do precatório, especialmente porque, conforme lei estadual vigente, o Estado do Rio Grande do Sul era - e é - responsável subsidiário pelas dívidas do Ipergs. Caso o Poder Judiciário não adote uma postura mais firme e ativa nessas situações, novos meios de postergação e inadimplemento serão criados pelo Estado devedor, colocando em cheque a moralidade da Administração Pública e o próprio conceito de Estado Democrático de Direito, já que não é justo que a lei não seja aplicada, com o mesmo rigor, em caso de inadimplemento confesso do Poder Público. * Advogada no escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados (O Estado de S. Paulo 09.04.2012/Caderno N2) (Notícia na íntegra)